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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Preocupações de um velhinha

Se o ronco de um quadrimotor rompe a calma da manhã, os olhos da velhinha se erguem assustados do canteiro de couves para o céu onde o monstro de metal passa com imponência aterradora cintilando ao sol, e de sua mão pende por um momento o velho regador de lata, que ela pousa depois lentamente no chão, quando o som já se perdeu e a distância apagou o minúsculo ponto no azul; e então ela olha para os canteiros, seus canteiros que ela rega toda manhã e de tempos em tempos cava com a enxadinha e semeia, ela olha e tem medo, seu coração que já morreu em muitas mortes e que sempre ressuscitou com a valentia de uma planta rebelde parece agora temer coisas jamais vistas, coisas obscuras e terríveis que lhe anunciam o ronco do avião sobre sua cabeça, as notícias que os olhos, num intervalo do crochê, vão tentando decifrar no jornal largado sobre a mesa, ou os ouvidos atentos recolhem das conversas.

— Antero, os chineses são gente má? …

— Os chineses? Por quê? São gente feito nós mesmos.

— Hoje li no jornal que eles estão matando muita gente …

— Guerra, Mamãe.

— Guerra pra quê?

— Pra que; guerra, uai, um é inimigo do outro e quer destruir o outro.

Guerra que lembra é a do Paraguai, era menina ainda, o pai contando histórias, umas bonitas, outras tristes — mas não pareciam matar tanta gente. Depois outra guerra, muito longe, e depois, mais perto, a guerra da Itália, quando diziam que o Jaime podia ser chamado a qualquer hora e em que o Amadeu foi, tinha até um retrato dele vestido de soldado — mas essa guerra ficava noutras terras, a milhares de léguas de distância, e era preciso ir de navio ou avião, pois tinha o mar. Agora era esquisito, parecia que a guerra estava em toda parte (tantos nomes de lugares que ela nunca tinha ouvido falar), no mundo inteiro — e decerto de uma hora para outra estaria ali também na cidade, no meio deles, aviões jogando bombas, soldados atirando nas pessoas e as casas pegando fogo, sangue e gente morta nas ruas.

— O Brasil também está na guerra? …

— O Brasil? Não.

— Então como que eu li que foi um batalhão de soldados brasileiros para um lugar estrangeiro …

— Onde? Ah, isso é outra coisa, Mamãe; é guerra, mas não é o Brasil, é a ONU, um batalhão de soldados do mundo inteiro, vários paises, mesmo quem não está na guerra; é para acabar com a guerra, entende?

Diz que entende e pára de falar; depois ela vai pensar sozinha para ver se entendeu mesmo, mas agora não está entendendo: pois se não está na guerra então pra que mandar soldado? Mas não gosta de perguntar aos filhos, eles não gostam de explicar, dizem que é muito complicado, a senhora não entende, Mamãe. Mas tem hora que dá uma comichão na língua e quando vê já está falando:

— Quê que é belico?

— Bélico: acento no é. Bélico é guerra, coisas de guerra.

— Material bélico …

— Fuzil, metralhadora, canhão, tanque, morteiro, tudo isso.

— Morteiro? Uai, essa eu não tinha ouvido falar não, é arma também? Como que ela é?

— A senhora anda curiosa, hem, Mamãe; pra que que a senhora quer saber? É arma de matar, destruir; é um cano, a gente joga a bomba dentro e o cano joga a bomba pra longe e ela explode, morteiro é isso.

Tomou uma chamada, bem feito, quem mandou ela ficar perguntando? Sabe que eles não gostam de explicar, já tomou várias chamadas e não aprende; mas é que dá uma comichão e quando vê — ainda bem que tem hora que segura e não fala: melhor deixar para quando estiver sozinha no quarto, de noite, no escuro, antes de deitar; aí vai pensando devagarinho e repetindo o que leu ou falaram para ela: mas quanto mais pensa, mais fica tudo embaralhado na sua cabeça. As vezes reza a Deus pedindo que Ele ajude seu entendimento, mas o que sente é que as coisas no mundo ficaram tão complicadas que nem mesmo Deus pode mais entender direito; sente como se Ele também estivesse numa confusão e num medo igual ela, aquele medo que estava agora dia e noite com ela: era como se de uma hora para outra uma coisa terrível fosse acontecer e acabar com tudo o que havia de bom na terra. De manhã, ao acordar, lembrava-se de sua hortinha, suas couves, alfaces, tomates, cebolas, moranguinhos; estariam lá ainda, no mesmo lugar do mesmo jeito, ou encontraria apenas um montão de cinzas cheio de braços e pernas de gente, cabeças, orelhas, olhos esbugalhados, como vira no sonho?

Ontem, Cidinho, o netinho maior, na hora que ela estava aguando, entrou na horta com um estranho objeto na mão, uma arma que ele falou o nome mas ela não entendeu e que bastava puxar o gatilho que ela e a horta desapareceriam na mesma hora; ele falou que ia puxar; ela pediu pelo amor de Deus que não fizesse isso; ele puxou e então houve um estalo, mas nada aconteceu, e ele ficou rindo dela e dizendo "Vovó boba, Vovó boba", e depois saiu de afasta continuando a rir dela e a dar tiros. Ela ficou parada entre dois canteiros, o coração ainda batendo forte do susto, as pernas trêmulas, e ao olhar para as suas couves, verdinhas e viçosas, começou a chorar — era boba mesmo, era boba.


(Luiz Vilela:In Contos Jovens 1;Mansur, Gilberto e Lajolo, Maria Philbert – Editora Brasiliense – São Paulo, 1973)

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