Tenho um presente para vocês, o melhor presente de Natal que posso dar: uma história bonita. E com agá mesmo, pois é real, embora pareça mais uma estória naquele sentido de Guimarães, o Rosa. Contei-a só a duas ou três pessoas — trata-se de história meio secreta, discreta, para poucos — e se a conto hoje a vocês é não apenas porque o dia é especial, mas vocês também o são para mim. Acreditem.
Foi um sábado de setembro último. Era um daqueles dias de ventania descabelada da primavera gaúcha, e Déa Martins me convidou para ver o pôr-do-sol na Ponta do Gasômetro, na beira do Guaíba, onde os Oxuns se encontram. Sentamos na grama, ficamos olhando o céu, o rio, o horizonte verde das ilhas. Provavelmente fumei um cigarro, Déa deve ter falado dos problemas de produção com os Paralamas do Sucesso, lembramos de nossa amiga Stella Miranda ou inventamos mais histórias sobre as irmãs Salete, Bebete e Janete. O que quero dizer é que não houve mesmo nada especialmente prévio. Nenhum aviso, nenhuma suspeita. “Aconteceu sem um sino pra tocar”, como no poema do príncipe Péricles Cavalcanti que Adriana Calcanhoto canta e outro dia me fez chorar de beleza. Ríamos muito, isso é sempre o melhor com Déa: ri-se sem parar.
O vento espalhava rapidamente as nuvens pelo céu. Dissolviam-se em fiapos primeiro brancos, depois rosa, depois vermelho cada vez mais púrpura, até o violeta, enquanto o Sol ia-se transformando aos poucos numa esfera rubra suspensa. De repente observei: certa nuvem não se mexia. Apenas uma. Parada, branca, enorme, eu olhei desconfiado. E tinha uma forma inconfundível, qualquer criança veria. Desviei os olhos, falei sem parar, as outras nuvens continuavam a esfiapar-se. Aquela, não. Então, com muito cuidado eu disse: “Déa olha lá aquela nuvem.” Ela olhou. E disse: “Meu Deus, é um anjo.”
Sem gritaria, ficamos olhando a nuvem-anjo. Ninguém mais olhava para ela embora, apesar de discreta, fosse um escândalo.
Quanto às outras nuvens, continuavam a se esgaçar, virando sem parar elefantes, camelos, colinas, nuas mulheres barrocas, como é próprio da natureza das nuvens. Mas aquela, aquela uma não se transformava em nada diferente dela mesma, apenas aperfeiçoava a própria forma. Quer dizer: ficava cadavez mais anjo. Mais tarde, ao chegar em casa,tentei desenhá-la. Olho o desenho agora: a perna direita levemente dobrada, como num plie de dança clássica, a esquerda alongada para trás, num per. feito relevé o corpo se curvando suave para a frente, com o braço esquerdo erguido para o alto e o direito estendido em direção ao Sol. A palma aberta da mão direita se voltava para baixo, como se abençoasse o Sol que partia para o Oriente. Além de anjo, bailarino. E tinha asas, imensas, duplas, quádruplas, múltiplas, espalhadas em várias cores atrás dos cabelos longos. Estava lá parada no céu, a nuvem-anjo, abençoando o sol, o rio, o céu sobre nossas cabeças, a cidade longe.
Quase não falamos. Ficamos até supernaturais, espiamos outras coisas, remexemos nas formigas, namoramos à toa em volta. Vezenquando um espichava o canto do olho para avisar ao outro: “Continua lá”. E assim foi, até que o Sol sumiu, o azul- marinho veio vindo das bandas dos Moinhos de Vento, apareceu a conjunção Vênus-Júpiter em Escorpião. A nuvem? Continuava lá, imóvel. E sozinha. O vento era tanto que todas as outras tinham desaparecido, sopradas para Tramandaí, Buenos Aires, Montevidéu. Só restava ela, a nuvem-anjo, abençoando os últimos raios dourados. Começou a esfiapar-se também apenas quando levantamos para ir embora. Ao chegarmos ao carro, não havia mais nada além de estrelas no céu imenso da Lua quase cheia em Aquário.
Pensei: “Glória a Deus sobre todas as coisas”. Foi o único pensamento que me veio. Nem era direito pensamento, parecia mais uma oração.
O Estado de S. Paulo, 2/12/1994
(Caio Fernando Abreu, In: Pequenas Epifanias)